Nesses dias em que tenho permanecido dentro de casa por conta da ameaça real da Covid-19 (doença causada pelo Coronavírus), muitos pensamentos e lembranças voltam à mente com frequência. Uma memória muito presente são as histórias da Gripe de 1918, que ficou conhecida como Gripe Espanhola (embora hoje se saiba que não surgiu na Espanha).

Crescemos ouvindo histórias contadas por nossos avós, tios e mais velhos do nosso convívio, que adorávamos, como as histórias de Trancoso, de caçadas e pescarias ou de “almas do outro mundo”. Dessas últimas, tínhamos muito medo, mas gostávamos de ouvi-las. Mas uma história que era contada, reiteradas vezes, pelos mais velhos, menos por nossa avó Deolinda que vivenciou todas aquelas agruras e por isso não gostava de tocar naquele assunto, nos deixava muito tristes e nos causava muito medo: era a História da Gripe Espanhola. Lembro que uma vez, ainda pequena, perguntei para ela se eram verdadeiras aquelas histórias e ela me respondeu que sim, mas que queria apagar aquelas lembranças.

Ouvíamos aquelas histórias com grande pavor e apenas um fato nos fazia rir. Segundo relatos, onde hoje é o atual município de Bocaina, a Lagoa Grande foi a localidade onde morreu mais gente. Talvez fosse, na época, a área mais povoada, uma vez que é a mais próxima do Rio Guaribas. Contavam que lá morriam pessoas quase todos os dias e que teve dia de morrer até três pessoas. Morreram pessoas em todas as casas. Se foram quase todos os mais velhos. Os mais novos já estavam exaustos de cavar sepulturas e carregar defuntos na rede, sem ao menos poder chorar a morte de seus parentes e amigos.

Mas era sobre minha avó materna (Deolinda, de quem herdei o nome) que ouvi as histórias mais tristes. Ela tinha apenas 15 anos e perdeu o pai e a mãe (meus bisavós Chicô e Rosa) na mesma semana. Ficaram quatro irmãs (todas menores, pois minha avó era a segunda filha) sem pai e sem mãe. Passaram todo tipo de privação e até muito preconceito por ser uma casa só de mulheres. Elas eram tão frágeis que tinham medo até de dormirem sozinhas. Passavam o dia em casa, mas todas as noites iam dormir na casa de uma tia (Tonha). Para completar a tragédia, ainda tiveram que enfrentar sozinhas a seca de 1932. Passaram muita fome. Comeram de tudo que encontravam: frutos do mato, raízes de todo tipo (imbu, anaro, colé), massa de mucunã e macambira. Só não morreram de fome por causa do Rio, onde pescavam e plantaram batata, feijão e milho. (Naquela época o Rio Guaribas era caudaloso e cheio de vida).

– Mas tudo passou e estamos todas vivas, graças a Deus, concluía minha avó, aliviada.

Pelos costumes e crenças da época, as pessoas só podiam ser enterradas em Terra Santa, por isso todos os mortos eram levados para ser enterrados nos arredores da Igreja de Nossa Senhora da Conceição. Foram essas circunstâncias que geraram o fato cômico (se não fosse trágico) que nos fazia rir muito.

Contavam que o Velho Benvindo, que morava próximo à estrada por onde passavam todos os defuntos que vinham da Lagoa Grande, vivia de portas fechadas. Mas como tinha um desafeto que morava lá, todas as vezes que avistava os “irmãos das almas” conduzindo uma rede, ao invés de ir ajudá-los (como era costume), abria uma brechinha da porta e gritava perguntando:

– É Mago?

Os condutores respondiam aborrecidos:

– É NÃO!

Ele resmungava: “Mago… oh homem renitente! Ele ainda não veio não, mas ele vem! Um dia ele vem!

Mas Mago não veio. Foi um dos poucos idosos da Lagoa Grande que não morreram naquele ano. E tudo passou.

Quando minha avó morreu eu tinha apenas 10 anos. Hoje lamento muito por ainda não ter a consciência que tenho hoje, pois poderia ter ouvido muito mais histórias e ter colhido muito mais informações.

Depois de adulta, consciente de que precisamos registrar a História, conversei (e gravei em fitas, que ainda tenho guardadas; só não tenho como ouvi-las) muito com seu Chico Leal, que era um grande conhecedor da História de Bocaina e tinha ainda vagas lembranças dessa época, e um dos assuntos tratados foi esse: a Gripe Espanhola.

Ele realmente me afirmou que a Lagoa Grande foi a comunidade mais atingida e se emocionou muito ao relatar os fatos. Me disse que não sabiam como essa doença tinha chegado aqui. Mas que, provavelmente, tinha sido pelos tropeiros que iam fazer compras em Fortaleza. Afirmou ainda que as pessoas morriam sem nenhum tratamento, até porque não havia médicos e nem remédios para aquele mal.

– As pessoas bebiam apenas chá de cebola e de muçambê e outras beberagens…  Alguns escaparam por milagre, relatou-me com uma tristeza profunda Seu Chico Leal.

E completou:

– Hoje está tudo diferente. Até aqui na Bocaina já temos dois médicos (referindo-se a Dr. Gilberto e Dr. José Luís) e temos muitos remédios. As pessoas também têm muito mais consciência e esclarecimento, graças a Deus. Mas foi muito triste, mesmo.

O Museu Neno, localizado em Lagoa Grande – Bocaina, ainda guarda entre seus objetos uma prova material dessa época: um baú centenário que pertenceu a Francisco Miguel de Sousa Borges (descendente de Borges Marinho), que era nosso bisavô Chicô, que foi vitimado em 1918 pela Gripe Espanhola.

Hoje, é com tristeza e aperto no coração que recordamos essas lembranças, mas alimentamos a certeza de que tudo passa e que as pessoas hoje tenham realmente mais “consciência”, como afirmou seu Chico Leal, em 1989.

 

Bocaina – PI, 27 de março de 2020.

Deolinda Marques

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